Em Deus Confiámos - Visitem a Velha Árvore
A idade que tinha nunca era a mesma. Já fora mais velho, não no aspecto, nem na realidade. O tempo é a coisa mais parecida com o sonho que existe. Mas será que existe, o tempo?
Liharn também não sabia, mas utilizava-o para escapar. Desde quando não se lembrava, o tempo para ele deixara de ser a linha bem comportada que era para toda a gente, tornara-se num novelo desalinhado e cada vez mais embaraçado. Para todos eles, os nossos salvadores, deixara de haver o ano passado ou o último Verão e muitas vezes ontem não era mais que uma convenção tácita e subjectiva.
Denominavam-se a si próprios como os adoradores de sóis e eram os descendentes das ovelhas tresmalhadas do rebanho do senhor. Com um raio, não necessito de ser sarcástico para mim mesmo!
A floresta não era um espaço num só tempo, era sim um autêntico formigueiro espalhado pelos tempos, mas de uma coerência tal que se apresentava como normal aos nossos pobres olhos. Fora obra deles, tudo aquilo, e no início o tempo não lhes sobrava.
Só quem sabia os segredos dos túneis podia viajar nos diversos estratos da estranha floresta. Quem o ignorasse, como todos aqueles vis caçadores, estava limitado a um único espaço, a um único tempo, e via a presa fugir-lhe inexplicavelmente, desvanecida e levada para um qualquer limbo.
Os meus olhos não me tinham enganado quando achara a tez morena de Kurt demasiado acentuada para o tempo que ali tínhamos passado. Ele andara vários meses com os adoradores de sóis, no passado e no futuro, acentuando com o sol de ontem o que o sol de hoje tinha iniciado.
- Ainda é muito longe, Kurt?
- Não Karen, penso que já estamos perto. Estás cansada?
Karen encolheu os ombros, resignada à marcha que já durava há alguns dias, repartida pelos tempos que já utilizáramos.
- Para onde vamos, Kurt? – indaguei.
- Para a velha árvore.
- E o que é a velha árvore? – interveio Karen.
- É o elo.
Perante o nosso silêncio expectante, Kurt explicou-se:
- Existe um local comum a todos os tempos, que está presente em todos eles, com a mesma aparência e a mesma verdade. É o elo, e o elo é uma árvore, velha de séculos e pujante de vida. Quando se despedem, eles fazem-no sempre com a mesma frase: visitem a velha árvore. Aí têm a certeza de que se vão encontrar, pois aí o tempo é comum a todos os tempos. Dito de outra forma, o tempo lá não existe. Não se aflijam se não perceberam, eles também não se preocupam muito com todo este assunto.
A luz da tarde era cada vez mais rasante e chegava interceptada por mil troncos e ramos aos nossos olhos cansados. Seria a luz de hoje?
Pobre Roger e pobre Karen, tudo aquilo para eles era uma novidade confusa. Para mim também o fora, alguns meses atrás, quando um deles, surgido do nada, praticamente me tirou das mãos do Arcanjo Gabriel.
Fui-lhes contando tudo durante a viagem até à velha árvore, as fugas e as emboscadas, e a escolha do momento do ataque que lhes proporcionara a fuga.
Liharn não era o chefe, eles não tinham chefe, bastava-lhes terem tido um, há muito tempo. A sua adoração do sol, ou melhor, dos sóis, como eles preferiam dizer, era mais uma vaga filosofia anti-Deus que qualquer crendice eivada de superstições. Os adoradores de sóis não eram selvagens nem primitivos, apenas viviam o tipo de vida que lhes dava a tão necessária liberdade.
- E qual é o papel de Deus no meio de tudo isto? Quem é ele afinal? – perguntou Karen.
Kurt avivou as chamas da fogueira antes de responder. O laranja vivo do fogo dançava-lhe no rosto, dando-lhe mil aparências diferentes.
- Ele é mesmo Deus, aquele Deus que imaginávamos? – reforcei eu.
- Sim e não. Digamos que sem ele o universo não existiria, mas poderia passar muito bem sem ele agora. O contrário também é a verdade: ele nunca poderia ter acontecido se o universo não tivesse nascido; é o velho problema do ovo e da galinha...
- Mas ele é louco! – exclamou Karen.
- Grande coisa... Será que não somos todos loucos? O que é a loucura, senão um estado a que convencionámos dar esse nome? Porque é que os loucos não são os outros? Porque quem lhes chama isso tem o poder. Deus tem o poder, logo não é louco. Os loucos somos nós e os adoradores de sóis, que não nos dobrámos à sua vontade e não desempenhámos correctamente o papel de presas.
- Então ele tem mesmo poderes? – perguntei.
- Sim, mas nada de excepcional. Umas malabarices, umas facilidades na passagem aos bastidores e uma melhor compreensão do cenário, nada mais que isso. Não é o grande senhor que pode dispor do mundo a seu bel-prazer e que tudo muda quando quer. O universo subjugou-o às suas regras e ele não pode fugir a isso.
- E a sua aparência? São todos tão humanos!
- Sabe Karen amiga, o que lhe vou dizer ninguém sabe se é a verdade, mas é uma boa hipótese. – disse Liharn – A realidade é o que nós queremos ver. Não tente encontrar verdades absolutas nesta frase, porque não as há. Provavelmente até é uma refinada mentira, mas não deixa de ser agradável a hipótese de que temos algo a dizer sobre o que nos cerca. Agora vou dormir.
Levantou-se e refugiou-se nas sombras. Ainda o ouvimos dizer:
- Amanhã chegamos lá.
A manhã já era antiga quando chegámos ao que parecia ser uma pequena clareira encantada, tirada a algum conto de fadas que saldara as suas cenas.
A luz parecia mais difusa e todos os contornos mais doces, e no meio estava ela. Parecia estar no sítio ideal, parecia não haver mesmo outro local em que pudesse estar, tão perfeita e singela.
Não a conseguia ver toda, os seus ramos verdes perdiam-se algures numa névoa de luz, uma luz coada pelo tempo que ali era uno. Roger estava como eu, encantado com a doce aparição, só Kurt não mostrava a admiração provocada pelas descobertas.
Uma pequena porta abriu-se no seu tronco baixo e largo, como se fosse uma passagem para algo mais grandioso que aquele Jardim do Éden que mais se assemelhava a um inferno mal disfarçado. Liharn tinha-nos dito: Deus e o Diabo são a mesma pessoa, e o bem e o mal são coisas sem significado para ele...
Aquela árvore parecia Deus, não o outro que tínhamos visto, mas aquele que antes tínhamos imaginado, e ali, naquele local, o bem e o mal pareciam ser o que sempre pensáramos que fossem.
- Karen amiga, visite a velha árvore.
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